terça-feira, 13 de abril de 2010

Deslizes a vista

Sócrates Santana*

O cheiro de morte era avassalador. No momento - um trabalhador de alívio rachado - abre uma das portas de madeira da capela do hospital. No interior, mais de uma dúzia de corpos parados em um berço de baixo e no chão, envoltos em lençóis brancos. Aqui, um punhado de cabelos grisalhos espiou para fora. Lá, um joelho foi arremessado akimbo, como se as mãos estivessem no quadril e os cotovelos curvados para fora ou dobrados. Uma mão pálida alcançada através de um vestido azul que latejava na telinha. Ao expectador coube o papel de reanimar aquelas pessoas, sentir a pulsação delas, a deriva dos milhares de desabrigados do Morro do Bumba, em Niterói.
O corredor era como um necrotério improvisado. Um médico e duas enfermeiras trataram de esvaziar gradualmente a fila. Apressaram a morte de alguns pacientes, injetando-lhes doses letais de medicamentos. O cemitério hospitalar afogou as lágrimas dos familiares, soterrados por “deslizes” do Comitê da Integração Nacional e sucessivos governos brizolistas no município. A telinha não acompanhou o que ocorreu no hospital, mas, tratava de desvelar o novo estatuto de ética dos médicos, no bloco seguinte, enquanto a fila do SUS diminuía a cada injeção.
Após alguns meses, o médico e as enfermeiras foram detidos e prestaram depoimento sobre a conexão com as mortes de quatro pacientes. A fila era bem maior. O noticiário ouviu o doutor em cadeia nacional. Diminuir a dor dos pacientes, esse foi o argumento. O processo sumiu de vista. O doutor virou candidato em 2010. Eleito, escreveu leis para refazer o estatuto de ética dos médicos e garantir imunidade aos profissionais de saúde em caso de “catástrofes”, como os deslizamentos no Rio de Janeiro. Ele defende a mudança dos padrões de assistência médica em caso de emergência. Certa vez, no plenário do Congresso Nacional, argumentou que é impossível o consentimento informado durante os desastres e que os médicos precisavam ser capazes de evacuar os pacientes mais doentes ou mais gravemente feridos.
Mas a história do que aconteceu nos dias frenéticos no Rio de Janeiro não foi totalmente contada. Muito mais pacientes foram injetados. As investigações dão conta que pelo menos 17 pacientes foram injetados com morfina ou sedativo, ou ambos, após um esforço de recuperação. A autópsia constatou que grande parte dos pacientes não corria – sequer - risco real de morte, mas, isso nunca foi divulgado. Os jornalistas não possuem acesso aos laudos, que certamente, não existem mais ou nunca existiram. Os detalhes completos, talvez, nunca sejam conhecidos.

*Sócrates Santana é jornalista e às vezes escreve textos de ficção

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Oposição fracionada

Sócrates Santana*

Na prática, o governador Jaques Wagner acertou. A aproximação com o senador César Borges acolhia um estímulo do presidente Lula. Diga-se de passagem: Lula também queria Geddel Vieria Lima dentro da chapa de Wagner. Isso representaria a unificação do palanque nacional no estado. Mas, o peemedebista não acatou o pedido do presidente. Wagner encontrou uma nova alternativa na reabertura de diálogo com o PR. Suou, cedeu e trabalhou para esvaziar ao máximo a candidatura do principal adversário, o presidente do DEM, Paulo Souto. A missa saiu melhor que a encomenda. Wagner unificou o palanque nacional e a oposição na Bahia, numa única tacada. É a oposição em doses homeopáticas.

Apesar de não ter sido do jeito que o presidente Lula encomendou, a missa agrada a conjuntura nacional e, de quebra, resolve os problemas a vista dos partidos que compõem a atual base de sustentação do governo na Assembléia Legislativa da Bahia. Wagner afastou César Borges das hostes de Paulo Souto. Isso enfraqueceu ainda mais o palanque de José Serra na Bahia. Sobraram apenas duas alternativas para o senador republicano: Geddel ou Wagner. Mas, a partir das exigências apresentadas pelo PT, restou a César Borges cumprir com o principal acordo: manter o PR alinhado a candidatura nacional da petista Dilma Rousseff.

O clima plebiscitário estimulado pelo PT nacional e estadual é mantido. Por um lado, a candidatura de Dilma Rousseff garante Geddel, Borges e Wagner unidos. Digo, unidos pelo objetivo comum de elegerem a candidata do presidente. Por outro lado, Wagner satisfaz os anseios da centro-esquerda e enfraquece a candidatura do DEM, isolando Paulo Souto, sem PP e PR. Queiram ou não, César Borges continua representando a direita no estado. Não é, nem de longe, de centro. Por sua vez, Geddel ganha fôlego e esquece José Serra de uma vez por todas.

Por essas e outras, arrisco dizer que Wagner uniu a oposição de uma maneira que não agradou a própria oposição. O governador fragmentou as forças da oposição. Diferente de 2006, quando a oposição estava unida e afinada, em 2010 terá que disputar consigo mesma quem assume este papel. E, queiram ou não, na hora da disputa, não cabe usar uma máscara de dia e outra a noite. E apenas duas candidaturas não sofrem com essa crise de identidade no momento, que correspondem às candidaturas do DEM e do PT. Essas, sim, como água e óleo.

*Sócrates Santana é jornalista